quarta-feira, 18 de julho de 2012

BRINCAR COM CINZAS (POR FRANCISCA CLOTILDE, 1887)

O acaso colocou-os de novo em face um do outro, depois de cinco anos de separação.
Eles se tinham amado ardentemente durante alguns meses e vivido isolados do mundo, embebidos em sua felicidade; mas um dia olharam-se indiferentes e quebraram aquelas doces relações.
Porque esse rompimento? Não eram felizes? Não se tinham jurado tantas vezes um amor eterno? Há coisas que não se explicam.
Ele foi viajar. Ela atirou-se ao turbilhão do mundo à vida de festas, sequiosa de luxo, de adorações.
E nem ao menos um recordação, uma saudade!
Custaram a conhecer-se. Ambos tinham mudado muito durante a ausência.
Ele não se cansava de contemplá-la, admirado de vê-la tão formosa.
Ela atropelava-o com perguntas. Indagava os lugares por onde andara, o que tinha visto de mais interessante, quais as impressões que sentira na viagem.
Uma suave intimidade renascia entre eles. Pareciam irmãos que se interrogassem depois de uma longa e penosa ausência.
Aceitas o meu braço?
— E onde me levas?
— Vamos almoçar. Ela acompanhou-o sem constrangimento, risonha, quase feliz de o tornar a ver.
Achava-o também mais formoso. O vestuário elegante dava-lhe um certo ar de nobreza e distinção. Tinha adquirido melhores maneiras, sua conversação se tornara variada e agradável até mesmo o olhar tomara uma nova expressão.
Falava-lhe dos lugares que tinha percorrido, das magníficas paisagens que apreciara, dos costumes estrangeiros que notara com uma graça e volubilidade encantadoras.
Chegando ao hotel pediram almoço.
Sentiam um bom humor admirável.
Nunca no tempo em que viviam juntos haviam passado tão deliciosa manhã.
Falaram do passado.
Recordaram a primeira vez que se tinham visto.
Nesse dia ela trajava um vestido cor de rosa que lhe empalidecia ligeiramente as faces, suavizando-lhe a beleza. Trazia um chapelinho de plumas brancas e folgava descuidosa como uma criança travessa, ao lado de uma amiga da sua idade.
Relembram as cousas mais insignificantes, as puerilidades mais graciosas. A memória lhes reavivava cenas que pareciam esquecidas.
Achavam um certo encanto em revolver as cinzas daquele passado que para eles tinha se esvaído como sonho.
Falaram de uma noite de teatro, em que ela, despelada e ciosa porque ele tinha assestado o binóculo para uma atriz, se retirara antes de terminar a peça, e de uma manhã do estio, límpida e formosa, com todos os perfumes das flores, com todos os gorjeios das aves, em que eles tinham divagado através dos campos, felizes e alegres como noivos apaixonados.
Misturaram risos e prantos, carícias e desdéns, o que houvera de bom e transparente na sua união ao que ela tivera de sombrio e mau.
Como as horas voavam rápidas, levando as últimas fragrâncias dessas flores murchas que eles desfolhavam!
É tão bom falar-se do passado com alguém que nos compreenda, e que como nós lamente esse tempo, sem dúvida o melhor da vida!
lhes era tão doce estar juntos naquele íntimo sossego de outrora. (...) larga conversação que tinham tido sobre o passado prendera-os de tal sorte que lhes faltou coragem de separar-se.
Eles se tinham divertido a brincar com as cinzas da fogueira que julgavam extinta e insensivelmente haviam ateado um incêndio.
O passado com todos os seus encantos atraía-os de novo.
Agora ele fixava os olhos nos dela com unia expressão repassada de um sentimento tão forte que a deixava atordoada.
Apertando-se mutuamente, tremiam-lhe as mãos, e os lábios mal puderam balbuciar uma confissão de amor!
Daí a 8 dias era-lhes impossível separar-se mais.
Pertenciam um ao outro por direitos mais justos, por títulos mais sagrados.
E nos momentos de colóquio íntimo em que seus corações se expandiam ao calor do sentimento que os dominava, gostavam de dizer sorrindo-se: “Foi brincando com as cinzas do passado que chegamos a amar-nos devoras”.

(F. Clotilde. Revista A Quinzena, n. 9, Fortaleza, 15 maio 1887, pp. 70-71).