segunda-feira, 7 de maio de 2012

A JANGADA E O JANGADEIRO POR FRANCISCA CLOTILDE

FRANCISCA CLOTILDE

A JANGADA

Em face do mar, contemplando a jangada que desliza garbosa sobre a esteira azulada das águas, volve-se o meu espírito para a gloriosa campanha do abolicionismo na terra que amo com estranhado desvelo.

Relembro a quadra feliz em que o ideal da liberdade dominava todos os espíritos, fazendo as lagrimas dos captivos transformarem-se em sorrisos de esperança.

Quando o heróico jangadeiro bradou com sua linguagem rude e sublime: - Aqui não se embarca mais um escravo! - fechado assim o porto a um dos mais vis comércios que podiam ser realizados entre gente civilizada, um fremito de entusiasmo agitou aqueles que pugnaram pela causa santa e novos horizontes se dilataram para os miseros filhos da raça precita. Era o arranco generoso de um coração livre que repercutira em muitos outros, limpando da superficie dos verdes mares a mancha que neles deixara a passagem dos navios negreiros.

Que festas deslumbrantes não comemoram o magno acontecimento! As emoções tolhiam o verbo potente do Dr. Almino e as suas frases de fogo crystalizaram-se em lágrimas de júbilo como os que numa explosão de entusiasmo lhe correram ao longo das faces a 24 de Maio no palacete da Assembléia, onde em uma apoteose de sorrisos e de flôres se glorificava a Fortaleza pela abolição de seus escravos.

Aquelas noites hibernais tinham luares de alegria, reverbéreos de patriotismo que deslumbravam, quando o prestito libertador percorria as ruas, ostentando-se nas mãos de nossas gentis patricias, os símbolos dos municipios que já haviam recebido o beijo da aura civilizadora.

Assim, todas as vezes que sobre o dorso agitado dos mares vejo passar a jangadinha veleira, repassando os episódios da mais bella das campanhas, tenho ufania de ser cearense e sinto desejos de proclamar aos quatro ventos as glorias imorredouras de minha terra.

F. Clotilde. Outubro - 07. Biblioteca Pública, RC 372.4, A 615 - 1908 - p 365 – 367.

O JANGADEIRO

Indômita coragem brilhava no olhar do rude jangadeiro que, postado junto à praia, ouvia o marulhar das ondas, contemplando o horizonte que se estendia limpido, apresentando naquela tarde o azul esmaecido dos dias hiemais
.
A jangadinha veleira balouçava-se nas vagas parecendo adornar a caricia forte do oceano e mais longe o navio aguardava os passageiros que demandavam as plagas do Sul.

Uma leva de escravos, escoltada pelo sinistro mercador de carne humana, aproximava-se tristemente.

Braços unidos, corações despedaçados,  os míseros envolviam um último olhar para os areias  alvejantes da terra da pátria que iam deixar para sempre.  Lágrimas profusas brilhavam naqueles rostos onde a fatalidade estampara desde o berço o ferrete da maldição de Cham.

O que os esperava nas paragens do Sul?  O engenho, o trabalho forçado, a tarimba, a minguada ração, o azorrague do feitor cruel, o opróbrio, a miséria enfim!

Ali a escravidão ainda era mais negra!...

E se aproximavam os míseros da praia, enquanto o marulho das ondas quebrava a monotonia da tarde que passava.

O filho do mar compreendeu a extensão daquela dôr que extravasava em prantos; olhou a casaria branca de Fortaleza sombreada de coqueiros, iluminada pelos revérberos do sol triunfante que afugentara as névoas hibernais. Um grande sentimento de compaixão ergue-se-lhe noíintimo; a revolta da consciência sobrepujou ao dever de jangadeiro.

Sugestionou aos companheiros a greve mais honrosa que se tem registrado na história da humanidade e o brado vibrante que imortalizou o seu nome suplantou os protestos do negociante negreiro que não queria ser estorvado no seu comercio vantajoso.

Como um clarim apregoando as harmonias da liberdade saiu dos lábios do “Dragão do Mar” o grito humanitário e potente: “Neste porto não se embarca mais um  só escravo!”


F. Clotilde. Folha do Commercio. Fortaleza, 26 de março de 1911.

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