Apenas os lábios maternais contraídos por uma dor enorme pousaram o último beijo nas pálpebras arroxeadas de Lili, sua alma inocente e pura voou para o céu.
Uma nuvem dourada pelos raios do sol que acabava de nascer por trás da colina, num dia de estio brilhante e formoso transportou-a do mundo à pátria dos anjos.
E Lili pensou que sonhava ao ver-se naquela mansão de delícias, inundado por uma luz que quase lhe deslumbrava os olhos, respirando perfumes misteriosos e de uma suavidade tal que pareciam se evolar de um imenso vergel de rosas e jasmins.
Os querubins vieram recebê-lo contando hinos festivais. Tinham asas deslumbrantes e roupagens de finíssima gaze e eram todos tão lindos que Lili quedou-se a contemplá-los em verdadeiro êxtase.
Uns tangiam áureos bandolins, outros tiravam das harpas sons harmoniosos, outros enfim dedilhavam instrumentos desconhecidos com uma gentileza encantadora.
A entrada de Lili no céu era uma festa.
Os anjos levaram-no em triunfo para as moradas paradisíacas.
Atravessaram paragens luminosas onde o ar estava impregnado do aroma de incenso e mirra.
Por todos os lados brilhavam flores as mais belas e que em nada se assemelhavam às dos jardins terrenos.
Lili procurava recordar-se do que lhe havia acontecido.
Lembrava-se que estivera muito doente, que sua mãe não se afastara um só instante de junto de seu pequeno leito, que lhe vira sempre nos olhos vestígios de pranto, que ela o beijara repetidas vezes com muito carinho.
Tinha sentido um peso estranho na cabeça, um entorpecimento em todo o corpo. Um frio glacial se apoderara dele, sentira vontade de dormir e fechara os olhos.
Depois... Não se lembrava de mais nada.
Por isso figurava-se-lhe sonho tudo o que estava vendo. Achava-se muito à vontade entre aquela legião de anjos risonhos e carinhosos, era tão bonito tudo o que o rodeava que ele não desejava acordar.
Transformara-se em querubim. Tinha asas transparentes como os raios de uma estrela e um diadema de esplêndidos diamantes ornava-lhe a fronte.
Tornara-se leve como uma borboleta e voava inebriado de felicidade a par de seus amiguinhos por entre o exército de bem aventurados e virgens cercadas de esplendor divinal.
Aproximaram-se de um trono iluminado por um fulgor ainda mais belo e intenso.
Os perfumes tornavam-se mais embriagantes, os cantos mais ungidos de amor junto do sólio majestoso do santo dos santos.
Lili ante aquele espetáculo surpreendente e sublime compreendeu o que acontecia. Estava no céu.
Aquela deleitável habitação era o paraíso. Sua mãe falara-lhe tantas vezes.
- Se fores bom e obediente, meu filho, diria-lhe ela, Deus gostará de ti e te reservará um lugar junto de seu trono.
Realizara-se a promessa; ele estava perto do trono de Deus.
Mas então tinha morrido sem sentir dor alguma. A doença lhe havia minado pouco a pouco a existência e ele se finara como flor a que falta seiva e orvalho.
Como era bom morrer pequenino!
No céu só havia risos, músicas e perfumes; nem um rosto triste, nem uma sombra de dor.
Deus beijava as frontes dos seus anjos com ternura do pai e a Virgem alisava-lhes os louros cabelos, envolvendo-os em carinhos verdadeiramente maternais.
O mundo era tão feio e triste!
Pequenino como era Lili não compreendera suas misérias e sofrimento; mas vira muita lágrima nos olhos dos pobres que estendiam a mão pedindo com que matar a fome. Crianças de sua idade andavam quase nuas e descalças através das ruas nos longos dias de inverno expostos à chuva e à lama.
No céu, porém, eram todos formosos como um riso d’alvorada, trajavam riquíssimas galas, não havia ricos nem pobres, todos sentiam o mesmo prazer e tinham direito à mesma felicidade.
Mas no meio daquele viver inexprimível daqueles gozos sem mácula que transportavam as almas eleitas em um rapto de íntima adoração aos pés de Deus, entre aqueles cânticos que deliciavam os ouvidos e aqueles aromas que se espargiam cada vez mais suaves, cercado da infinidade de querubins e serafins que acompanhavam o séqüito imponente das virgens e dos justos Lili teve saudades do mundo.
Lembrou-se de sua mãe que lhe queria tanto e que devia estar inconsolável pela sua morte.
Teve sede de seus beijos, de seus afetos, de todas aquelas carícias com as quais ela o festejava quando abria os olhos todas as manhãs.
O céu com todos os anjos, arcanjos, virgens, santas e mártires não valia um só dos afagos dela.
E Lili sentiu uma saudade profunda. Trocaria tudo aquilo que ainda há pouco o extasiava por alguns dias mais passados junto de sua mãe.
Deus viu o que se passava na alma do pequeno querubim e se apiedou de sua tristeza.
A mesma nuvem dourada envolveu-o como uma rede de luz e opala, e em breve foram desaparecendo a seus olhos todas as belezas e esplendores da mansão bem aventurada.
Lili viu-se no seu leito e sentiu nos lábios a doçura de um beijo de sua mãe, ao mesmo tempo que um alegre raio de sol vinha brincar-lhe no rosto.
JANE DAVY (Pseudônimo de F. Clotilde), Cf. A QUINZENA, 23 de fevereiro de 1888.
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