apercebendo e aprimorando-se para o cultivo de outro gênero,
de maior amplitude e complexidade: o romance.
(Dolor Barreira)
A gentil criancinha viu a luz do dia em uma estreita e úmida mansarda. Filha do amor e do crime nascia quase ao desamparo, e apenas os beijos maternos festejaram-lhe a entrada no mundo.
A mãe seduzida por um homem sem coração necessitava encobrir a falta para continuar a viver entre a familia, e tinha de abandoná-la à caridade publica algumas horas depois de nascida.
Era tão franzina! Precisava tanto de cuidados maternos; porém a sociedade severa e inexorável a triste sorte da enjeitada.
São assim as leis humanas.
A moça inexperiente e sem o escudo de uma boa e sólida educação caíra aos amorosos assaltos de mancebo sedutor, e tornara-se mãe. Era, portanto, indispensável ocultar o fruto de uma culpa que o mundo não perdoa, e entre o amor de mãe e o terror do anátema que lhe cairia na fronte, a pobre moça hesitava.
Abandonar a filha, uma creaturinha frágil, flor mal desabrochada que a primeira carícia de vento pode molestar, deixá-la à porta de algum rico compassivo, privá-la dos seus beijos, não vê-la talvez mais!
Trouxera-a nove meses no seio, nutrindo-a com o seu sangue, com a sua própria vida.
Às ocultas fizera um enxolvazinho para que o seu anjo tivesse uma camisinha de rendas e uma touca enfeitada, ouvira-lhe o primeiro vagido, beijara-a com toda effusão de seu amor, e ia separar-se dela!
O seu coração de mãe revoltava-se.
Havia de conservá-la, embora a família a repelisse.
Trabalharia para sustentá-la, sofreria junto a si. Já lhe queria tanto!
Mas a vergonha e o opróbrio que a esperava?
Tratava-se n’aquelle espírito abatido pela dor física numa lucta horrível. Ficaria irremediavelmente perdida. A filha mais tarde envergonhar-se -ia de sua origem e talvez a amaldiçoasse.
Aparecia-lhe o mundo com a sua moral severa a estigmatisá-la, a excluí-la do rol das mulheres honestas, a família a expulsá-la.
Podia continuar a ser querida e respeitada. Ninguém descobriria sua falta, freqüentaria a sociedade, seria bem recebida em toda parte, encontraria talvez um homem que a desposasse e havia de ser feliz. Mas para conseguir isso devia abandonar a filha aos cuidados estranhos, condená-la a implorar continuamente a caridade alheia. Era horroroso!...
Tinha-a junto do coração, molhava-lhe as facezinhas rosadas com lágrimas de ternura acariciava-lhe a loura cabecinha, extasiava se diante dos seus olhos que se abriam indecisos como para fitá-la e dizer-lhe: não me abandones.
O amor materno ia triunfar, mas ali estava alguém aa reclamar-lhe a creança, aa animal-a ao sacrifício expondo-lhe as conseqüências de sua fraqueza, a dizer-lhe que se apressasse, que em casa poderiam desconfiar de sua demora.
Pobre mãe! O miserável que murchou a coroa de tua virgindade não pensa decerto nas angústias porque estás passando.
Ri neste momento, quem sabe?
A sociedade não há de repelir, elle tem o direito de entrar com a fronte erguida nos salões, onde se ostenta a gente melhor e será recebida com atenções e obséquios.
Mas, tu, vitima indefesa, terias arremessada ao charco onde se revolvem as criaturas sem pudor.
Não te vendeste, o amor te perdeu, te entregaste generosamente e sem restrições ao homem que te fez pulsar o coração ainda virgem; porém o mundo não indaga destas cousas. Há de salpicar-te o rosto com a lama da degradação e marcar—há a fronte com o selo da ignomínia e da desonra!
Nem mesmo a maternidade dá o direito de esperar indulgência. Riram de tua dor e zombaram de teus desvelos, e sobre tua filha recairá a tua infâmia.
A jovem mãe sente a vertigem do desespero. Passa-lhe pelos olhos uma nuvem que a deslumbra.
Aperta mais o filhinho, cobre-a de beijos, agasalha-a cuidadosamente contra as intempéries do tempo à pessoa que a espera.
Depois, como impelida por força sobre humana ergue-se do leito dos sofrimentos, deixa a mansarda úmida e estreita e volta para a casa da família.
Vai continuar a frequentar o mundo.
Ninguém lhe verá a palidez das faces e as palpitações nervosas do coração.
Sua honra está salva, porque o mundo contenta-se com exterioridades.
E enquanto ela aparentemente é feliz, e cercam-na de homenagens e afeições, a filhinha aos cuidados de estranhos não passa de uma enjeitada.
F. Clotilde. Revista A Quinzena. Fortaleza, ed. de 15/10/1887.
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Francisca Clotilde teve, no ano de 1897, quarenta e dois contos, publicados em brochura “Coleção de Contos”, pela Typ. Cunha, Ferro & Cia de Fortaleza, contendo 126 páginas, dedicados “À memória de meus pais: João Correia Lima e Ana Maria Castelo Branco”. O livro foi prefaciado por Tibúrcio de Oliveira, ex-aluno e afilhado literário de Francisca Clotilde.
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